A vida de Kláudio poderia ter sido boa. E
não estou nem considerando o fato de que quase todos o chamam de cráudio, ou de
que seu nome é escrito com K, o que normalmente causa, se não confusão, um
mínimo de atraso em qualquer procedimento que ele tenha que dizer seu nome para
algum atendente de repartição pública - o que aliás é muito comum na vida de
Kláudio, ter que fornecer seus dados para atendentes, sejam de repartições
públicas ou privadas. Ou mesmo pelas piadas incessantes de colegas de escolas
e, posteriormente, colegas de trabalho, pela excentricidade da escrita do seu
nome, num país em que se tem liberdade para chamar-se como bem se entenda - ou
como bem seus pais entendam.
Também não é porque Kláudio tem um emprego
meia boca, desinteressante, que não oferece nem perspectiva de melhora, nem
aprendizado, nem ao menos colegas bonitas para se relacionar amorosamente, de
forma ocasional.
A vida dele é uma merda porque ele escolheu
virar à direita em vez de virar à esquerda no dia 02 de agosto de 1997.
Alguém provavelmente vai dizer "que
absurdo", afinal de contas não é possível que a vida de alguém se
diferencie tanto só porque um dia ele resolveu ir pra um lado em vez de ir para
o outro lado. Mas é por isso mesmo.
No dia 02 de agosto de 1997 - eu não me
lembro, não estava lá, mas sei muito bem - Kláudio fez o que fazia normalmente
pela manhã, que era sair para o trabalho. Na época ele trabalhava numa loja em
frente ao emprego atual. Ele estava atrasado, e em vez de ir andando, o que
fazia todos os dias, ele resolveu pegar um ônibus. Na verdade ele não estava
atrasado, se formos rigorosos com o termo, porque Kláudio sempre chegava entre
10 e 15 minutos antes da loja abrir, sem real necessidade. Por isso que, se ele
fosse andando, não chegaria atrasado, chegaria no momento de abertura da loja.
Mas ele decidiu pegar o ônibus, então, ao
sair de casa, ele deveria virar à direita no cruzamento de sua rua com a
Tenente Pires. Seu caminho habitual seria seguir a Tenente Pires pela
contramão, atravessá-la, descer uma escada, atravessar a Avenida Tuiuiú, subir
outra escada, passar por duas vielas, uma travessa, entrar na Alameda Gil
Vicente, andar aproximadamente 300 metros, e finalmente chegar ao trabalho,
percursos que ele fazia em pouco menos de meia hora.
Virando à direita, ele segue o fluxo de
carros da Tenente Pires até o ponto, pega qualquer ônibus, segue a Tenente
Pires até a Albuquerque Figueroa, onde Kláudio desce já próximo à Gil Vicente,
para andar cerca de 150 metros. Ele até preferiria fazer o trajeto de ônibus
todos os dias, pela comodidade, se existisse comodidade, já que o trânsito é
sempre cheio, e nunca tem lugar vago pra sentar. Sem contar, claro, o custo.
Caminhando ele faz algum exercício, economiza dinheiro, e acaba gastando quase
o mesmo tempo de percurso. Quase. Para ele, no dia 02 de agosto, os 10 minutos
a menos de gasto de tempo para ir ao trabalho foram motivo suficiente para
decidir pegar o ônibus em vez de caminhar.
Talvez o motivo para ter virado à direita tenha
sido realmente não se atrasar, mas como já se sabe, se ele fosse andando e
chegasse 10 ou até mesmo 15 minutos depois do habitual, ninguém notaria, quem
dirá reclamaria. Mesmo que ele chegasse 30 minutos depois, as chances são de
que ninguém sequer percebesse que ele ainda não tinha chegado. Ele sabia disso
perfeitamente. Por isso, às vezes, pensando sobre esse caso, eu me pergunto
qual foi o motivo real, se é que houve outro, para que Kláudio acabasse por
virar à direita em vez da costumeira esquerda.
O que importa é que, por causa disso, a vida
dele acabou onde acabará, que é onde acabam as vidas sem graça e emoção, ou
seja, uma aposentadoria chata, com uma mulher chata, e filhos chatos, pouco
dinheiro, pouca coisa pra se orgulhar, menos ainda pra se arrepender - que ele
saiba - com um enterro simples, num cemitério de quinta, numa segunda, com 7
pessoas, e poucas recordações.
Se ele tivesse virado à esquerda, como
sempre, ou como quase sempre, ele poderia, finalmente, encontrar com Paulo, aquele
amigo que estava lhe devendo dinheiro - não era muito, mas dinheiro é sempre
bem vindo - e que, semanas depois, foi embora pra Manaus e nunca mais se viram,
se falaram ou mesmo pensaram um no outro, e ele poderia fazer aquele curso de
informática que ele tanto queria, mas nunca conseguia. Kláudio poderia, também,
encontrar com Girlane, aquela ex-colega do último ano, que tinha uma quedinha
por ele, mas que tinham se desencontrado depois que ele largou o colégio e se
mudou pra trabalhar como entregador na loja de um conhecido de seu pai.
Inevitavelmente, Kláudio iria passar na frente da casa de Dona Tereza, tia de
Bito, que ia dizer que estavam procurando alguém pra trabalhar numa loja nova
que ia abrir ali perto, e que ia indicar ele. Ele poderia passar, como quase
sempre fazia, na padaria Pão Preto, pra comprar o lanche de todo dia, porque Kláudio
não toma café da manhã, e prefere comer alguma coisa por volta das 10h, pra
poder ficar atendendo no horário de almoço, enquanto o chefe come, e lá
encontraria Zé Negão, que tinha acabado de chegar de viagem e passava ali por
acaso, e ia convida-lo pra pegar o baba de quarta de noite. E finalmente,
porque chegaria um pouco depois do horário habitual, encontraria Quinho, seu
irmão, logo na esquina, e iria ter uma chance de pedir desculpas e voltar a
falar com ele e com o resto da família.
Mas Kláudio virou à direita. Não pegou o
dinheiro que estavam devendo, ficando sem sobra pra fazer aquele curso de computação,
nem começou o namoro com Girlane, e nunca mais conheceu alguma mulher
minimamente interessante que se interessasse por ele, nem pegou o emprego com
Dona Tereza, na mesma loja que hoje ele trabalha, mas porque pegaria o emprego
logo de começo, já estaria num cargo de
menor responsabilidade e maior remuneração, ainda mais se conseguisse fazer o
curso de informática que queria com o dinheiro que tinha emprestado, nem
encontrou Zé Negão, e nunca mais teve ânimo ou convite pra fazer nenhum esporte
e acabou virando um sedentário preguiçoso, e nem encontrou Quinho, e nunca mais
falou com ninguém de sua família, e morreu sem ter tido um casamento feliz, um
emprego legal, sem conhecer os sobrinhos, sem saber de notícias da família, sem
perspectiva, sem sonhos, e sem ser lembrado por ninguém.