Ela descobriu que tinha câncer.
Já sabia que tinha algo errado. Já sabia. Mas não que era tão errado.
Primeiro ela ficou parada, muda. O médico olhava para ela, frio. Por
dentro ele estava triste. Muito triste. Mas por fora tentava ficar frio porque
ele não sabia lidar com esse tipo de situação.
Entendeu? Entendi. Eles conversaram um pouco mais. Alguns tipos de
câncer se curam. Não era esse tipo de câncer.
Ela foi pra casa andando, um caminho longo. Ligou o fone bluetooth e
caminhou por mais de uma hora até em casa. Não tinha ninguém, e ela pode sentar
e chorar, deitar e chorar, tomar banho e chorar, e chorar, e chorar até apagar.
Ela acordou chorando, no meio da noite, e continuou chorando, e voltou
a dormir, e voltou a acordar.
Ela estava muito triste. Porque iria morrer, claro, ela não queria
morrer, mas o que a deixava mais triste é que ela iria morrer sem casar. Ela
não aceitava que fosse morrer sem casar. Era seu sonho. Ela nunca quis tanto
outra coisa na vida. Ela já tinha encontrado o namorado perfeito e pra ela era
uma questão de tempo. Ela achava, ao menos.
Sua família ficou arrasada. Destruída. Sua mãe não parava de chorar,
seu pai não parava de bater nas paredes, seu irmão mais novo não conseguia
olhar nos olhos dela. Todos estavam culpados, tristes, confusos, perdidos.
Todos foram ao médico com ela, todos custaram a aceitar, e teriam custado mais
se ela não começasse a piorar tão rapidamente.
Seu namorado também estava muito triste. Claro. Quem não estaria, no
seu lugar? Mas ele estava triste porque ela iria morrer, não porque ele iria
perder a namorada. Ele gostava dela, mas era um namoro... qualquer. Ele não
pretendia casar com ela. Ele não pretendia ter filhos com ela. Ele sabia que em
um ano ou dois ele iria embora dali, estudar fora, e seria o fim do namoro.
Talvez eles ficassem amigos, talvez não, isso era quase indiferente. Era bom
agora namorar com ela, e era bom saber que não iria namorar com ela pra sempre.
Duas semanas depois do diagnóstico ela só falava do casamento. De como
iria morrer sem casar, de como era triste morrer sem casar, de como sua vida
não teria valido a pena se ela morresse sem realizar seu único e maior sonho.
Sua família não era pobre, mas não tinha dinheiro sobrando. O que os
pais ganhavam, usavam para sustentar a casa. O que os filhos ganhavam, nos seus
sub-empregos, eles usavam para se divertir e pra tentar juntar algo para a
faculdade. Mas juntar dinheiro não era o forte de nenhum deles.
Seu namorado também não era pobre, mas também não era rico. Não tinha
família, até que ganhava relativamente bem, mas tinha que se sustentar e juntar
dinheiro para a própria faculdade.
Assim que, somando tudo isso, casar seria um negócio muito complicado.
Porque não bastava pra ela um casamento privado, um casamento coletivo numa
igreja, um casamento no fórum. Ela queria festa. Ela precisava da festa. O
sonho dela era um casamento de verdade. Um casamento com convidados, com festa,
com música, com um vestido lindo, com um noivo lindo, com um padre, com uma
banda, com comida, amigos, noite adentro, com ornamentos, com tudo o que ela
tinha direito.
Sua família não tinha a menor condição de bancar isso. Não assim, sem
se preparar, sem juntar dinheiro com os parentes. Seu namorado também não. Mas
ela só falava nisso, todo o tempo, e chorava, e chorava, porque iria morrer
logo, e iria morrer sem realizar seu sonho. E como seria horrível morrer sem
realizar seu sonho. E como o tempo dela estava acabando.
A família dela pegou alguns empréstimos. Vendeu os carros. Mudou
rotinas. Não seria suficiente. Foram conversar com o namorado, que não queria
casar. Pra que ele iria casar? Ela iria morrer, ele continuaria ali, sem ela.
Ele com certeza iria casar com outra pessoa, teria filho com outra pessoa, para
que ele iria casar com ela? Qual o sentido disso? Mas a pressão foi muito
forte, ele não tinha como negar o pedido de alguém prestes a morrer, por mais
que isso fosse prejudicar sua vida. Afinal, é o sonho da vida dela. Que está
prestes a acabar.
Realmente foi um casamento muito bonito. Depois de se endividar
bastante e aceitar, o namorado entrou na onda da festa. E os pais. E o irmão, e
os amigos, e os parentes, e o padre, e a cidade. E ela foi notícia local,
depois no estado, depois no país, e depois no mundo. E a festa durou dois dias,
e ela estava linda com um vestido comprado numa loja chique, e teve excelentes
comidas, e as pessoas iam pra casa, descansavam e voltavam, e teve banda, e
teve DJ, e ao final eles tiveram uma excelente lua-de-mel num hotel na cidade
vizinha. Foi melhor do que ela poderia esperar.
E uma semana depois ela morreu, no hospital, vomitando sangue, com a
família chorando, com dor, com tristeza, com raiva, com desespero, com tudo o
que ninguém precisa nem se prepara.
E a família nunca mais se recuperou financeiramente, e o irmão dela
nunca pode ir pra uma faculdade, e seus pais passaram o resto da vida
trabalhando nos fins de semana. E seu namorado vendeu a casa, vendeu o carro,
mudou para um apartamento com amigos e levou duas décadas para se recuperar
financeiramente.
Mas ela realizou o sonho de sua vida, mesmo que não pudesse aproveitar
depois. Não é isso o que importa?