segunda-feira, julho 24, 2017

Número 61

Eu vi o número 61. Digo, parei e olhei o número 61. Foi como se pela primeira vez eu o percebesse além do conceito de número, como a personificação do número. Me senti aquelas pessoas que moram no mesmo prédio há anos mas não olham para os que trabalham lá, e um dia, como que por acaso, lembram que aquele ser também é gente e o veem pela primeira vez. Ou seja, me senti mal pelo desrespeito contínuo que tive pelo número 61 todos esses anos.

A fonte em questão, não sei seu nome, tinha o arco alto do número 6 bastante curvado. O 1 era ordinário - não me lembro de perceber essas diferenças entre os números um, existem, mas eu ignoro, inconscientemente. Não no sete, não no cinco, não no seis ou nove. Era um seis com seu arco superior razoavelmente curvado, um seis clássico, um seis que me lembrava tempos antigos e sérios, um seis quase filosófico.

E olhei para este seis solene seguido do um ordinário e fiquei confuso, muito confuso, com aquele número 19 que tinha um aspecto tão diferente. Algo estava errado com o 19. O 1 estava no lado erado, o 9 de cabeça para baixo. Eu percebia isso não de forma muito consciente, era apenas confuso, eu sabia que algo ali estava errado.

O que estava errado era meu comportamento para com o número 61 durante toda a minha vida. Um número pouco notável, pouco dito, sem piadas próprias, sem grandezas naturais que lhe fossem características, uma idade irrelevante. Era o 61, mas não para mim, para mim ainda era o 19. Tinha uma coisa muito estranha com aquele 19. E então, percebendo a minha estranheza, resolvi olhar para aquele número de novo. Aquele trabalhador incansável que eu ignorei por todo esse tempo, lhe dando o status de coisa, não o respeito e individualidade que ele merecia desde antes de eu nascer.

Olhei para ele e o percebi. Pela primeira vez eu vi, de verdade, o número 61. Foi como quando você percebe que azul se chama azul, que tem aquele som muito especifico, e não azil ou azol, e tem aquelas exatas letras numa sequência exata com sua forma exata e seu resultado interpretativo não tão exato assim. Azul. Aquele momento que você repete e repete e repete a palavra, como que para testa-la, aquela palavra tão comum que de repente se torna uma estranha e você esquece mesmo como dizê-la, e se repetir bastante o som se perde e você a perde e ela deixa de fazer sentido completamente e vira um mantra ecoando no vazio sem significado próprio, sem voz, representação ou corpo. O 61 era hoje meu azul redescoberto.

Olhei para ele até que os algarismos deixassem de fazer sentido, até que eu esquecesse que ele é muito mais do que um desenho numa superfície, que ele não esta solto, que ele anda acompanhado do conceito de si próprio. Me perdi no 61, naquele até então estranho 19, e perdido nele fiquei até que de repente, pela primeira vez, eu o vi. Estava ali diante de mim o 61 em pessoa, seu avatar, seu proxy, seu múltiplo, sua representação, aqueles pequenos e redondos traços que são apenas a porta de entrada para uma dimensão própria e infinita que é a dimensão de todo número.

Eu olhei para ele com vergonha, como se pedisse desculpas por tê-lo ignorado por tanto e tanto tempo. Ele nunca me respondeu, não pareceu ficar com raiva, com rancor, com ódio, ou nenhum outro sentimento. Ele era apenas o 61, mas também o poderoso 61, que não precisa de minha aprovação, minha devoção ou mesmo meu reconhecimento. O 61, apenas. Foi bom vê-lo pela primeira vez. E agora, para mim, ele tem uma forca que eu desconhecia e nunca esperaria dele.

segunda-feira, dezembro 19, 2016

O casamento de uma vida

Ela descobriu que tinha câncer.

Já sabia que tinha algo errado. Já sabia. Mas não que era tão errado.

Primeiro ela ficou parada, muda. O médico olhava para ela, frio. Por dentro ele estava triste. Muito triste. Mas por fora tentava ficar frio porque ele não sabia lidar com esse tipo de situação.

Entendeu? Entendi. Eles conversaram um pouco mais. Alguns tipos de câncer se curam. Não era esse tipo de câncer.

Ela foi pra casa andando, um caminho longo. Ligou o fone bluetooth e caminhou por mais de uma hora até em casa. Não tinha ninguém, e ela pode sentar e chorar, deitar e chorar, tomar banho e chorar, e chorar, e chorar até apagar.

Ela acordou chorando, no meio da noite, e continuou chorando, e voltou a dormir, e voltou a acordar.

Ela estava muito triste. Porque iria morrer, claro, ela não queria morrer, mas o que a deixava mais triste é que ela iria morrer sem casar. Ela não aceitava que fosse morrer sem casar. Era seu sonho. Ela nunca quis tanto outra coisa na vida. Ela já tinha encontrado o namorado perfeito e pra ela era uma questão de tempo. Ela achava, ao menos.

Sua família ficou arrasada. Destruída. Sua mãe não parava de chorar, seu pai não parava de bater nas paredes, seu irmão mais novo não conseguia olhar nos olhos dela. Todos estavam culpados, tristes, confusos, perdidos. Todos foram ao médico com ela, todos custaram a aceitar, e teriam custado mais se ela não começasse a piorar tão rapidamente.

Seu namorado também estava muito triste. Claro. Quem não estaria, no seu lugar? Mas ele estava triste porque ela iria morrer, não porque ele iria perder a namorada. Ele gostava dela, mas era um namoro... qualquer. Ele não pretendia casar com ela. Ele não pretendia ter filhos com ela. Ele sabia que em um ano ou dois ele iria embora dali, estudar fora, e seria o fim do namoro. Talvez eles ficassem amigos, talvez não, isso era quase indiferente. Era bom agora namorar com ela, e era bom saber que não iria namorar com ela pra sempre.

Duas semanas depois do diagnóstico ela só falava do casamento. De como iria morrer sem casar, de como era triste morrer sem casar, de como sua vida não teria valido a pena se ela morresse sem realizar seu único e maior sonho.

Sua família não era pobre, mas não tinha dinheiro sobrando. O que os pais ganhavam, usavam para sustentar a casa. O que os filhos ganhavam, nos seus sub-empregos, eles usavam para se divertir e pra tentar juntar algo para a faculdade. Mas juntar dinheiro não era o forte de nenhum deles.

Seu namorado também não era pobre, mas também não era rico. Não tinha família, até que ganhava relativamente bem, mas tinha que se sustentar e juntar dinheiro para a própria faculdade.

Assim que, somando tudo isso, casar seria um negócio muito complicado. Porque não bastava pra ela um casamento privado, um casamento coletivo numa igreja, um casamento no fórum. Ela queria festa. Ela precisava da festa. O sonho dela era um casamento de verdade. Um casamento com convidados, com festa, com música, com um vestido lindo, com um noivo lindo, com um padre, com uma banda, com comida, amigos, noite adentro, com ornamentos, com tudo o que ela tinha direito.

Sua família não tinha a menor condição de bancar isso. Não assim, sem se preparar, sem juntar dinheiro com os parentes. Seu namorado também não. Mas ela só falava nisso, todo o tempo, e chorava, e chorava, porque iria morrer logo, e iria morrer sem realizar seu sonho. E como seria horrível morrer sem realizar seu sonho. E como o tempo dela estava acabando.

A família dela pegou alguns empréstimos. Vendeu os carros. Mudou rotinas. Não seria suficiente. Foram conversar com o namorado, que não queria casar. Pra que ele iria casar? Ela iria morrer, ele continuaria ali, sem ela. Ele com certeza iria casar com outra pessoa, teria filho com outra pessoa, para que ele iria casar com ela? Qual o sentido disso? Mas a pressão foi muito forte, ele não tinha como negar o pedido de alguém prestes a morrer, por mais que isso fosse prejudicar sua vida. Afinal, é o sonho da vida dela. Que está prestes a acabar.

Realmente foi um casamento muito bonito. Depois de se endividar bastante e aceitar, o namorado entrou na onda da festa. E os pais. E o irmão, e os amigos, e os parentes, e o padre, e a cidade. E ela foi notícia local, depois no estado, depois no país, e depois no mundo. E a festa durou dois dias, e ela estava linda com um vestido comprado numa loja chique, e teve excelentes comidas, e as pessoas iam pra casa, descansavam e voltavam, e teve banda, e teve DJ, e ao final eles tiveram uma excelente lua-de-mel num hotel na cidade vizinha. Foi melhor do que ela poderia esperar.

E uma semana depois ela morreu, no hospital, vomitando sangue, com a família chorando, com dor, com tristeza, com raiva, com desespero, com tudo o que ninguém precisa nem se prepara.

E a família nunca mais se recuperou financeiramente, e o irmão dela nunca pode ir pra uma faculdade, e seus pais passaram o resto da vida trabalhando nos fins de semana. E seu namorado vendeu a casa, vendeu o carro, mudou para um apartamento com amigos e levou duas décadas para se recuperar financeiramente.

Mas ela realizou o sonho de sua vida, mesmo que não pudesse aproveitar depois. Não é isso o que importa?

domingo, agosto 16, 2015

No restaurante


Ela estava atrasada. De propósito.
O cliente sempre a deixava esperando.
Pagava bem, tinha um caso relativamente fácil.
Mas abusava.
Ela decidiu não correr.
De longe podia saber onde ele estava.
Ele atraía a atenção das garçonetes.
As gorjetas ajudavam.
Mas ele era muito bonito.
Sorriso bonito, rosto bonito.
E ele também tinha um "quê" diferente.
Um ar, um sorriso diferente.
Ela se dirige à mesa dele.
Já sorrindo - ele sempre a recebe com uma cantada boba, mas bonitinha.
Mas dessa vez ele está acompanhado.
Ela para, um pouco assustada, um pouco contrariada.
Se sentiu um pouco traída.
"Que besteira, nós não temos nada".
Respirou e seguiu.
Ele a viu, sorriu e levantou, enquanto fazia o pedido à garçonete que não tirava os olhos dele.
Olá, disse, estendendo a mão, com um grande sorriso no rosto.
Ela ficou um pouco envergonhada, olhava de soslaio para a mulher à mesa, mas estendeu a mão, sem falar nada.
Ele puxa uma cadeira. Sente-se, por favor, bem ao seu lado.
Ela senta.
Esta é minha esposa, Júlia.
Como vai.
Prazer.
Espero que a presença dela não atrapalhe a nossa reunião.
Não, não, de forma alguma, ela diz, enquanto pensa, com um pouco de raiva: ele é casado!
Enfim.
Negócios.
Ela começa a lhe explicar o rumo que o caso deve tomar.
Ele chega mais próximo a ela. A esposa nem pisca.
Ele tem um perfume leve, muito gostoso, que só é possível sentir bem de perto.
Enquanto discutem o caso ele fica sério.
Ela acha bonito.
Ela gosta dos olhos dele seguindo as linhas dos papéis, enquanto a testa franze.
Ele pergunta algumas coisas, e sorri com as respostas.
Eles estão bem próximos, as pernas se tocam.
Até que a garçonete traz as entradas.
Pedi pensando em você também.
Eles guardam os papeis por alguns instantes. Vão se servir, suas mãos se tocam, levemente. Ela sente algo, ele parece não perceber.
A esposa dele está ocupada num telefonema interminável.
Ele oferece um petisco à esposa, que recusa.
Ele ri, e oferece a ela.
Ela acena, mas toma um susto, porque ele levou o petisco à sua boca.
Ela para, olha para a esposa dele, ao lado, alheia a tudo. Ele sorri, e insiste, com o olhar.
Ela aceita.
Seus lábios, levemente, tocam as pontas de seus dedos.
Ele sorri, satisfeito.
Comem um pouco. Ele a serve uma taça de vinho.
Não falam nada. Ele olha para o vazio, e de vez em quando olha para ela, bem nos olhos.
Ela fica um pouco intimidada.
Mas gosta.
Ela sorri, tímida.
Bebem.
Mais um pedaço de algo.
Ela fica com o canto da boca sujo.
Ele se apressa em limpar.
Ela gela.
Olha para o lado.
A esposa não está mais lá.
Ela procura Júlia com o olhar, e a encontra fora do restaurante, falando ao telefone.
A mão dele, agora em seu queixo, a traz de volta para a mesa.
Eles se olham profundamente por quase um minuto. A mão dele deixa seu rosto, desce para sua mão.
Ela treme, um pouco, nervosa. Não sabe o que fazer. E se a esposa voltar? Ela não quer nada com homens casados.
As mãos dele são um pouco pesadas e fortes, mas são macias.
Ele acaricia sua mão, enquanto a olha.
Júlia está voltando para a mesa. Ele sorri, aponta para a esposa com o queixo, e se afasta um pouco.
Ela respira, aliviada.
Uma garçonete se aproxima, com o cardápio. Ele faz pedidos para todos.
A esposa termina o telefonema, come algo. Eles dois se afastam um pouco, mas a mão dele continua sobre os joelhos dela.
Ela está incomodada.
É bom, mas é estranho, e tenso.
A mulher dele está ali, do outro lado da mesa.
Ele fala com a mulher sobre um evento que eles precisam ir na semana seguinte, enquanto inicia um carinho nos joelhos dela.
Lentamente.
Ela segura sua mão, mas ele não para.
É mais forte.
E ela não tem certeza se quer que ele pare.
Mais um vinho. Mais uma taça.
As mãos dele conseguem, aos poucos, avançar por entre as pernas dela.
Ele a olha nos olhos, de vez em quando.
E outras vezes, é como se ela nem estivesse ali, enquanto ele discute assuntos pessoais com a esposa.
Ela está muito tensa, já passou da fase de ter dúvidas se quer ou não, mas ainda está muito nervosa com a presença da outra ali.
A comida chega.
A esposa começa a comer e se concentra.
Ela esperava que ele fizesse o mesmo.
Mas ao contrário.
Ele não dá bola para a comida.
E avança sua mão por entre as pernas dela, até que não tem mais para onde avançar.
Ela dá um pequeno pulo na cadeira.
As mãos dele são quentes, assim como ela.
Ao menos, como ela está agora.
O coração bate rápido.
Ela abre as pernas, devagar. Está suando.
Ela tenta comer algo. Não consegue.
Preciso ir ao banheiro, ele diz. A esposa mal nota.
Ele levanta, e olha pra ela, sério. Sorri.
E sai.
Vai andando até o banheiro masculino. Olha pra trás, a cada 5 passos, para ela.
Ela não sabe o que fazer.
Ele para na porta do banheiro, olha para ela e entra.
Ela levanta.
Não diz nada, apenas sai da mesa.
Vai caminhando, nervosa, para o banheiro feminino.
Chega na porta, olha para os lados.
Ninguém parece notar ela por ali.
Vai até a porta do banheiro masculino.
Entra.
Ela nunca havia entrado num banheiro masculino antes.
Pia, urinóis, muitas portas.
Ele está de pé, em frente a um urinol.
Ele olha pra ela, e sorri.
Ela não sabe o que fazer.
Nervosa.
Muito nervosa.
Alguém poderia entrar a qualquer momento.
Ou sair de alguma das cabines.
Ele anda lentamente até ela, a puxa pela mão e a beija ali, no meio do banheiro.
Quente.
Forte.
Ela esquece onde está.
O coração está muito rápido.
A porta da cabine atrás dela está aberta. Ele a levanta pela cintura e a leva para dentro.
A porta fecha.
Do lado de fora, a porta do banheiro abre.
Ela fica tensa, paralisada.
Ela está tão tensa que não nota ele abrindo sua camisa.
Rápida, mas levemente.
E sua saia.
Ela tenta segurar as mãos dele, mas nem ela mesmo acredita mais nisso.

+_+_+


Silêncio no banheiro.
Ele a veste, rapidamente, e a conduz para fora, em segurança.
Ela, nervosa, atordoada, em êxtase, não sabe o que fazer.
Volte aqui amanhã para outro almoço. Eu devolvo os documentos. Mas chegue no horário.
Ela acena, ainda um pouco fora de si, e vai embora.
E passa a noite toda pensando no dia seguinte.

segunda-feira, maio 04, 2015

Esse obscuro objeto do desejo

- Amor...
- Oi, amor.
- Me diz uma coisa.
- Digo, claro. O quê?
- Queria saber sobre suas fantasias.
- Hum... Que que tem?
- Você já me contou algumas. Mas eu queria saber uma que você não teve coragem de me contar.
- Oi?
- É, uma bem barra pesada. Uma que você quase não tem coragem de admitir pra você mesmo.
- Tenho isso não.
- Ah, fala sério.
- Tô falando sério.
- ...
- Que foi?
- Não acredito.
- Mas por que  eu iria mentir pra você?
- Por vergonha. Por medo.
- Medo de quê?
- De eu achar sua fantasia absurda e te largar.
- Você me largaria por causa de uma fantasia absurda?
- Claro que não?
- Jura?
- Juro!
- Mesmo se eu fantasiasse com sua irmã?
- ...
- Aha!
- Não, amor, tudo bem. Eu entendo. Ela é linda, charmosa, inteligente, eu s...
- Eu NÃO fantasio com sua irmã. Era só um exemplo pra provar que minha fantasia secreta poderia ser tão absurda que você ficaria chocada e reagiria mal.
- Não, tudo bem. Foi só um susto. É só uma fantasia. Eu não acho que você vá cantar minha irmã.
- Eu NÃO fantasio com sua irmã.
- Ok, ok, mas não tem problema, foi só um susto.
- Certo.
- E com o que é, então?
- É sério que nós vamos continuar essa conversa?
- Claro! Eu adoro saber as maluquices que passam por essa cabecinha careca.
- Mas e se for uma coisa repugnante?
- Eu aguento.
- Duvido.
- Aguento, juro!
- Ah, para com isso.
- Por favor! Por favor, me conte!
- E se, sei lá, se eu fosse zoófilo?
- Transar com animais??? Que nojo!
- Viu que eu disse?
- Você gosta disso???
- Não, mas é isso que quero dizer, e SE eu gostasse? Você iria conseguir lidar com isso?
- Assim, é meio nojento...
- Pode ser BEM pior.
- Sério?
- Claro.
- Duvido.
- E se eu fosse zoopedófilo?
- O quê?
- Se eu gostasse não apenas de fazer sexo com animais, mas só com animais na mais tenra idade, antes de alcançarem a maturidade?
- Isso é errado!
- Você que perguntou.
- Nada por ser pior que isso.
- Claro que pode.
- Como assim?
- E se eu fosse zoopedopodófilo?
- Que diabos é isso?
- Alguém que gosta de fazer sexo apenas com as patas de animais ainda em desenvolvimento.
- Você é doente!
- Ah, é mesmo? E se eu fosse necrozoopedopodófilo? Gostasse de fazer sexo com as patas de animais bebês, mas só se eles estivessem mortos?
- Pare! Pare com isso!
- Ou melhor ainda! Copronecrozoopedopodófilo! Que quer transar com patas de animais bebês, mortos, mas apenas as que foram comidas, digeridas e excretadas!
- Que absurdo é esse que você está falando? Pare ou eu vou embora. Pare AGORA!
- Mas você não queria saber? Meus desejos mais profundos?
- Deixe de ser ridículo que você não gosta desses absurdos!
- Não, não. Na verdade minha fantasia envolve patas de animais bebês mortos que foram devoradas, digeridas e excretadas e depois congeladas! Criocopronecrozoopedopodofilia!
- Chega! Chega! CHEGA!
- VAI PIORAR! Pois saiba que eu gosto de fazer exatamente isso, só que embaixo d'água!!! Hidrocriocopronecrozoopedopodofilia!
- !
- É isso mesmo!
- !
- ...
- HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA! Seu idiota. Por um momento, você conseguiu me deixar extremamente enojada. Que merda. Mas tudo bem, foi engraçado.

+_+_+_+_+_+_+_+_+_+

- Amor.
- Oi Amor.
- Eu tenho uma fantasia que eu não tive coragem de contar.
- É mesmo? Você se cansou dos bebês bodes mortos congelados comidos excretados e sei lá o que mais?
- Não, é sério.
- Tá, o que é?
- Eu fico pensado que, quando eu morrer, eu...
- Ah, pelo amor de Deus, lá vem você me sacanear. Vá pra porra.
- Não amor, é sério.
- Sai daqui.
- Ô amor. Você sempre reclama que eu nunca me abro com você, que eu falo pouco, e quando eu venho contar um dos meus maiores segredos, você me trata assim.
- ...
- É sério.
- Ok. Me conte.
- Eu fico pensando. Quando eu morrer, eu não queria ser enterrado.
- O que isso tem a ver com fantasia sexual?
- Calma.
- Estou calma.
- Paciência, então.
- Está se esgotando.
- Ouça até o final.
- Continue.
- Quando eu morrer, eu não quero ser enterrado.
- Quer ser cremado?
- Não.
- Quer ter seu corpo doado para a ciência?
- Não, não. Eu quero ser bulinado.
- Como é?
- Isso. Quando eu morrer, eu quero ser bulinado.
- Não entendi.
- Essa é minha fantasia. Eu fantasio que, quando eu morrer, meu corpo seja vilipendiado com fins sexuais.
- Como assim???
- Exatamente assim. Eu me excito imaginando que meu corpo, morto, inerte, será utilizado para fins sexuais por outras pessoas.
- Meu Deus, você não pode estar falando sério.
- E de preferência, que introduzam coisas nos meus orifícios.
- Isso é revoltante!
- Se possível, algo que seja bem frio. Muito frio.
- ?!?!?!?!?
- Algo congelado. Algo que tenha sido congelado.
- Como assim?
- Assim. Talvez fezes que tenham sido congeladas.
- Que TIPO de doente é você????
- De preferência que as fezes tenham origem animal, isso é, que elas tenham vindo de um alimento que um dia foi um bicho.
- Pare! Saia daqui!
- Mas não qualquer parte do bicho. Não, não qualquer parte. A pata. Tem que ser a pata.
- Seu idiota!
- A pata de um bebê animal
- Doente!
- Meu desejo sexual secreto, minha fantasia mais íntima é, depois que eu morrer, que eu seja tocado com fins sexuais com a pata de um animal bebê que foi devorado, digerido e excretado, e em seguida congelado! É isso que eu desejo! Embaixo d'água! É isso sim! eu sou um Necroagrahidrocriocopronecrozoopedopodófilo!!!
- Sai daqui!!!!!

+_+_+_+_+_+_+_+_+_+

- Amor.
- Que é?
- Faz um carinho em mim?
- Vai tomar no cu, porra.
- Só depois de morto.


segunda-feira, fevereiro 23, 2015

Antes de dormir

Enquanto tocava nos cabelos dela, ele pensava no dia seguinte. Ela achava que ele estava concentrado na textura deles, pelo ritmo dos movimentos, e se deliciava.

Ele pensava na sua rotina e nas pequenas decisões que iria tomar ao longo do dia. Ela pensava nele. Como o toque de sua mão era macio, como  o carinho que ele fazia era tão bom, como eles estavam conectados.

Ele pensava no almoço. Amanhã era dia de malassado, e ele detesta malassado, teria que caminhar um pouco mais pra comer naquele à quilo da outra esquina. Ou então ficar no sanduíche mesmo. É, o mais provável é que ficasse com o sanduíche, o da outra esquina era muito abafado.

Ela tinha sono. O cafuné dele era tão bom. Ela estava feliz. Eles estavam juntos há algum tempo, e ele ainda tinha essa conexão com ela.

Ele tinha esquecido que amanhã era dia de revisão de textos. Ele xinga, mentalmente. Revisar o texto dos outros é um porre, ele pensa. Ainda mais quando tem tanta gente que não sabe nem ler, quem dirá escrever.

Ela está inebriada, pelo carinho e pelo amor. O toque gentil, a troca, o sentimento entre eles, era tudo muito reconfortante.

Ele está pensando no filme que ele vai ver com os amigos na quarta.

Boa noite, amor, estou caindo de sono. Te amo muito, ela disse.

Eu também te amo, bebê, respondeu, enquanto pensava no trânsito pra voltar pra casa, e achava que seria melhor esperar um pouco no fliperama da esquina.

quarta-feira, fevereiro 18, 2015

Atenta.

Atenta à mulher que muda os cabelos.
Atenta. São, também, sua força.
Atenta à mulher que assume seu cabelo para si; está a tomar posse de si.
Atenta, é mudança profunda. Roupas são pele; cabelo, expressão da raiz.
Atenta; e anda.

segunda-feira, abril 21, 2014

África e eu

Um dia eu fui à África. Uma entidade muito interessante.

Normalmente se associa a África aos negros, e vice-versa. Que negros? Aqueles, escravizados, trazidos para as Américas. Aí, às vezes, a gente trata a África apenas como cornucópia de negros escravizados. Ou pensa nela assim.

Por exemplo, na minha formação, eu tive uma dificuldade imensa pra internalizar que o Egito era na África. Porque fazem tanta questão de só falar de África como fonte de escravos (e de brigas de “tribos”) que você acaba não conseguindo associar isso a uma das maiores civilizações que já existiram. E aos persas, e aos mouros que foram à península ibérica. Enfim. O imaginário de África fica sendo - graças à maioria das escolas - limitado a etnias pouco evoluídas em termos de tecnologia e sociedade - porque nem isso as escolas ensinam, que as sociedades eram avançadas em termos de funcionamento, hierarquias, normas, leis, tradições, religiões, cultura.

Quando se “descobre” que não só essas etnias representavam muito mais do que era ensinado, mas que no mesmo continente, sistemas sociais extremamente complexos emergiram, dentro de civilizações altamente avançadas, é meio complicado somar as duas coisas.
Então primeiro você aprende tudo deturpado e separado, pra depois ter que desaprender e unir. É bem mais difícil do que parece. E acaba criando um certo desinteresse por África, porque, que diabos de interessante pode ter um continente (que muitos pensam que é um país) que é apenas um fornecedor de escravo (aquele povo terceira classe, que não serve pra nada, não pensa direito, vive se amotinando, etc)?

Morar em Salvador, por incrível que pareça, me ajuda a não me interessar muito por África.
Não apenas porque as escolas não ensinam, mas porque aqui tem muito negro. Muito. Dizem que é a cidade com maior população negra fora de África. Eu não sei. Mas tem muito negro. Então ver pessoas negras é o comum em Salvador. Quer dizer, deveria ser, mas se você olhar em lugares de nicho de gente rica ou classe média alta, vai ver poucos. Mas fora desse mundo - que é pequeno em Salvador - é todo mundo negro. Ou seja, negro, para mim, não era nenhuma novidade. E o normal é que não nos interessemos tanto por coisas que estão ao nosso redor o tempo inteiro. Na infância/adolescência, embora eu me interessasse muito por nossa cultura e “folclore”, me interessava muito pela mitologia grega e nórdica, que eram coisas alheias à minha cultura. Mas nunca me perguntava por África

Aí fui crescendo, estudando, conversando. E me perguntando “que diabos é África?”. Claro que já não era mais um continente provedor de escravos na minha cabeça, mas ainda tinha aquela confusão de somar tudo aquilo que me fora ensinado separadamente naquele espaço.

Quando se consegue somar tudo… acaba sendo difícil de apreender. Aí se começa a entender porque compartimentalizam. Tem que fazer esforço pra juntar tanta coisa diferente num mesmo lugar. É muito grande, muito diverso, cheio de histórias e culturas.

Eu queria ir à África. Não em qualquer lugar. Eu queria ver as pirâmides, ir em Marrocos, ir no Sahara. Os outros lugares não me interessavam muito, porque na minha cabeça domesticada pela escola, eram apenas cidades, pouco desenvolvidas. Nada de novo. Só gente.

Mas era um plano para algum momento num futuro distante. Minha sede pela história clássica ocidental era mais forte, e meus interesses pairavam primeiro por França, Espanha, Alemanha, Grécia, Itália. A África, nos meus planos, viria depois.

Mas eis que África veio antes. Fomos numa aventura filmar um resgate cultural no Benin. Um grupo das Bahias (não é só África que é plural) indo numa das Áfricas.

E foi a primeira vez que eu realmente parei pra estudar África. Tentar entender os países, geografia, povos, línguas, fronteiras, guerras. Se isso tivesse acontecido antes, meu interesse pelo continente seria maior, com certeza.

Me preparei. Benin. Uma tripinha, espremida entre Nigéria, Togo, Niger e Burkina Faso. É tão pequeno que há quem vá de barco à Nigéria pra contrabandear gasolina. Que é vendida na rua em frascos de vidros amontoados. Tão parecido com a Bahia antiga que, no meio da estrada, perdido em pensamentos, me perguntei o que eu estava indo fazer em Cachoeira.

África se mostrou diferente do que eu pensava. Essa África. Que deveria existir em algum lugar, mas seguramente era muito pouco pra se pensar daquele lugar. Muito estranhamento, mas muito sentimento de conforto. Aquele lugar que você não lembra, mas foi muito na infância, e as coisas vão ficando familiares pra você, ao mesmo tempo que são inéditas.

Óbvio que minha relação com África mudou. Muito. Eu penso bastante nessa viagem, adoro viajar. Não foi uma viagem de passeio, foi de trabalho, mas deu pra conhecer e viver muita coisa.

O que era hipótese mal formulada e mal embasada começa a virar prática. Incompleta, limitada, mas prática. Pisar o chão. Ouvir as vozes. Ver as pessoas. Comer. Olhar. E repensar aquele continente. Repensar o que me foi ensinado, por tantos anos. O que foi negligenciado, o que foi esquecido, o que foi não-dito. E as vezes apagar mesmo, pra escrever por cima.

É um país pobre. Tem pessoas muito felizes e sorridentes. Parece com a gente. Mas é diferente.

Que pena, mundo, que me venderam uma falsa África. Foi muito bom ter ido. Eu não sei se volto ao Benin. O mundo é grande, e eu gosto de conhecer outros lugares. Mas foi importante pra eu sentir de perto, e apagar uma história muito mal contada e, com o tempo, reescrevê-la.