Lembranças de amanhã.
Eu não me lembro a data em que aquilo começou, mas eu me lembro exatamente das palavras dele. Me lembro como se fosse hoje, ele de terno azul, chegando do trabalho. Trazia um saco de remédio nas mãos. Eu olhei estranhamente para aqueles remédios, e ele simplesmente sorriu, um sorriso amarelo. É para ajudar a cicatrizar o seu pé, ele disse, eu lembrei do seu corte quando estava voltando do trabalho, e resolvi parar pra comprar um anti-inflamatório. Que corte, eu perguntei, e ele disse, o corte que você teve no pé, por que pisou no copo. Mas eu não tinha pisado em copo nenhum, achei até que ele estava fazendo alguma brincadeira idiota. Pare com isso, eu falei, chateada, afinal isso não é brincadeira que se faça. Que brincadeira, ele perguntou atônito, e foi quando eu levantei meu pé, e ele viu que não tinha nada lá. Mas eu me lembro, você pisou num copo logo depois de eu ter chegado em casa do trabalho. Tomás, eu não estou gostando desta brincadeira, eu disse, e dei as costas, indo colocar os remédios na cozinha. Foi quando eu pisei no copo.
A partir daí que ele começou a ter estas visões. Ele insistia que não eram visões, que eram como lembranças, que as imagens vinham na mente como coisas do passado. Não atrapalhava muito a vida, as imagens não eram constantes, apesar de aparecerem todos os dias. Muitas vezes nós nos víamos em discussões sobre o acontecimento ou não de algum episódio, eu tentando resolver de antemão um ou outro problema que iria aparecer.
Outra coisa que não consigo me esquecer foi quando ele me acordou, bem cedinho, num sábado chuvoso, com um maravilhoso café da manhã na cama. Ele vinha bem silencioso, mas lágrimas caiam de seus olhos sem parar. Eu acordei, lentamente, e ele sorriu pra mim, enquanto chorava levemente. Parabéns, ele disse, com muita doçura nos lábios. Por quê, eu perguntei, o que houve, um pouco preocupada, um pouco hipnotizada pelo belo sorriso, um pouco curiosa. Parabéns, mamãe, nós teremos uma filha linda em breve, e ela vai ser cantora.
Nós guardamos estes segredo como se fosse o maior tesouro do mundo, afinal se as pessoas descobrissem, nossa vida iria virar um inferno. Todos iriam querer saber os números da MegaSena, se seriam felizes com os respectivos amantes, todo o tipo de pergunta sobre o futuro deles. Não iria adiantar explicar que as visões vinham como queriam, que ele não as controlava. Nós guardamos como um segredo, mas tentamos fazer bom uso delas. Na verdade, como ele dizia, eram lembranças. Não adianta o quanto tentássemos mudar a visão, ela acontecia, de uma maneira ou de outra. Apenas começávamos a nos preparar para os futuros acontecimentos.
Mas o que não me sai da memória foi aquela noite de 27 de Março de 2002. Eu estava sozinha em casa, por que Diana estava na França, e ele em São Paulo, numa reunião. Eram 23:12, quando o telefone tocou. Eu atendi, e ele estava chorando muito. Meu amor, ele disse, você se lembra de como as lembranças foram importantes para nossas vidas, de como elas nos ajudaram a esperar um futuro com mais segurança, que todos os dia eu tinha uma lembrança do futuro, claro que lembro, eu respondi. Ele ficou mudo. Querido, eu disse, você teve alguma visão muito ruim? Querido, me diga logo, por favor, eu não vou agüentar esta angústia! Não, ele respondeu. Eu não tive nenhuma lembrança ruim. Eu simplesmente não tive lembranças hoje.
Apareceu em todos os jornais a colisão entre os aviões por causa de uma sabotagem. Eu deveria ter percebido, afinal as lembranças estavam ficando cada vez mais próximas, mais próximas. Mais de que iria adiantar, mesmo que eu soubesse, não poderia fazer nada. Afinal, nós já sabíamos, era impossível mudar o futuro.
Engraçado como a pior previsão que ele teve foi não tê-las.
domingo, abril 07, 2002
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