Um quase epitáfio
Voltar a ler. deixar de ler coisas obrigatoriamente para escolher o que você quiser. Já ouço há muito o ditado "se não tem tempo pra ler, deixe a grama crescer", mas não é esse o problema, tempo eu tenho, não tenho é escolha. Continuo com uma carga razoável de leitura, mas não do que eu gostaria, e isso tem influenciado diretamente minha capacidade criativa, minha escrita, até mesmo meu ânimo de ver o mundo.
Ler sempre me é perigoso. Quando eu leio, fico mais lonje do chão, olho as coisas formais (trabalho, faculdade) como meros acontecimentos passageiros. Sonho, me emociono, reflito, e o mundo real fica distante, incômodo quase, um lugar que não permite outras opções, duro, frio e seco.
Faça isso, já entregou aquilo, pague essa conta, o cheque entrou na data errada, está no limite de faltas, vai ter de ficar até mais tarde, desça pra comprar pão, o computador queimou, chegou atrasado, me ajude aqui, preste atenção, me ouça, nada disso faz sentido se comparado a um bom livro.
Que tipo de mundo é esse? Eu que não boto um filho nele. Não, não gosto de estar aqui, obrigado por perguntar. É tão claro como tudo poderia ser diferente. Mas afinal, quando uma colega de sala te diz que não abriria mão do computador dela para que o nível de pobreza mundial diminuísse, afinal de contas, é bom que existam pobres e ricos, eu me pergunto pra que tanto esforço.
O mundo, como é, é um lixo e nada vai mudar isso. Já foi, papá. Dê adeus e bata palmas. Aliás, dê a Deus mesmo, porque ele coloca vaselina.
E às vezes eu fico, exatamente por causa disso, com raiva. Com raiva dos livros e dos filmes que nos fazem sair do mundo real, nos dão medo, esperança, alegria, mas depois nos trazem de volta. MALDITOS! VÃO EMBORA!
E lá vou eu, com uma câmera na mão e mil idéias na cabeça, e todas idiotas, bobas, supérfluas, por que falam das coisas que realmente importam e merecem atenção. Mas estão todos ocupados demais vivendo pra poderem entender, sequer notar que aquilo está ali e qeur dizer muito mais do que "alguém sentado olhando o mar" ou "que legal essa idéia", ou "tocante". Viver não é tão difícil, se viver é isso que dizem por aí. Difícil é perder a inocência mas ter consciência da sua pre-existência. Vamos esquecer tudo! Vamos esquecer que pretó é ladrão, que o cateto é primo irmão da hipotenusa, que metais não são gases na CNTP, que Hitler matou os judeus, que Zumbi fugiu para os Palmares, que a barata é imune à radiação, que existe uma força que é positiva e outra negativa e outra ainda que é forte e outra ainda que é fraca, e tantas outra. Vamos apenas brincar no parque, brincar de gangorra, de preferência, que não podemos brincar sozinhos. Vamos jogar basquete, tênis, futebol, vamos rir de nós mesmos, sentados na lama, comendo pão seco com café preto, e vamos achar isso bom, porque isso é o que realmente importa. Vamos esquecer os egos, superégos, metaégos, Ids, Its, Ets, etcs e afins, vamos esquecer dos fins, vamos nos preocupar com os meios, com os entreatos, com os silêncios, com as coisas que são o que parecem, com o parecer das coisas, vamos para o sol de manhã e para a sombra de tarde, vamos tomar picolé e comer bolacha água-e-sal. Vamos pular cada vez mais alto, e mais alto, até pegar uma nuvem de algodão doce. Uma pra mim também, outro vai gritar, e rindo, você vai passar para ele, as mãos meladas de açúcar semiderretido, de diversas cores, porque numa nuvem não há só branco e cinza, e vamos rolar na grama, e nos coçarmos, e comer goiaba do pé do vizinho, enquanto ele come do nosso, e contar até dez, cem, mil, infinito, e de novo, igual a Chuck Norris, e pular corda, e andar descalço, e dizer bem alto EU NÃO SEI A RESPOSTA DISSO e ninguém se importar, porque aquilo na verdade não faz a menor diferença.
Se não tem tempo pra ler, deixe de viver.
Aqui jaz Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino.
Uma lágrima, enfim.
quarta-feira, novembro 14, 2007
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