sexta-feira, janeiro 07, 2005


Le Monde
Sobre a pressão avassaladora exercida pelos EUA para não perderem terreno no campo audiovisual mundial.

Nicole Vulser


A cultura acabou se tornando uma valiosa meta estratégica no jogo da geopolítica global. Desde que as indústrias culturais se tornaram os bens de exportação mais importantes para os Estados Unidos, e no momento em que se negocia na Unesco (Organização das Nações Unidas em prol da educação, da ciência e da cultura) um projeto de convenção visando a proteger a diversidade cultural, a determinação dos americanos a preservar as suas vantagens adquiridas e a sua influência no mundo torna-se mais do que nunca um destaque da atualidade.

De 13 a 18 de dezembro, um grupo de 24 delegações aperfeiçoou o anteprojeto desta convenção, que deverá ser votada em outubro de 2005. As lutas que vêm sendo travadas dentro da Unesco para criar um instrumento jurídico bastante rígido destinado a proteger a diversidade cultural, refletem claramente uma batalha econômica muito mais vasta, a qual vem sendo conduzida cotidianamente pelos americanos.

O cineasta marroquino Nabil Ayouch sabe muito bem disso, desde que ele organizou, na qualidade de fundador da Coalizão marroquina em prol da diversidade cultural, uma manifestação pacífica em Rabat, em 26 de janeiro de 2003. A polícia interveio, ferindo levemente alguns dos manifestantes, enquanto a multidão, que estava reunida num ato em que todos ficaram sentados no chão, queria evitar que os acordos comerciais que estavam sendo negociados com os Estados Unidos permitissem que os americanos se apoderassem do conjunto do setor audiovisual privado marroquino.

"O acordo de livre-comércio deveria integrar todos os setores da economia", explica o diretor de "Une minute de soleil em moins" (Um minuto de sol a menos, 2003). "O nível das subvenções concedidas à cultura não pôde ser mantido, mas nada pôde ser realmente planejado no sentido de preservar a valer o futuro e autorizar a liberação de subvenções públicas nas novas tecnologias ou na Internet". "O pedido que nós estávamos formulando, que consistia em impor quotas de cinema nacional na programação televisiva ou de música marroquina nas rádios não deu em nada", lamenta Nabil Ayouch. "Em contrapartida, nós obtivemos ganho de causa em relação à lei sobre o audiovisual. Os americanos pretendiam poder adquirir mais de 49% do capital de um canal de televisão e modificar a lei para controlar vários deles. Isso não foi possível".

"Foi preciso que haja uma intervenção muito clara de Jacques Chirac junto às autoridades marroquinas para que o pior seja evitado", explicaram os assessores de François Loos, o ministro delegado para o comércio exterior.

"Os americanos propuseram abrir o seu mercado para os produtos agrícolas marroquinos. Em contrapartida, o Marrocos deveria de comprometer a renunciar à sua soberania em relação às suas indústrias culturais", sublinha o conselheiro de Renaud Donnedieu de Vabres, o ministro francês da cultura e da comunicação.

Ataques planejados e maciços

"Mas, muito concretamente", constata Nabil Ayouch, "os produtores marroquinos que tentam exportar frutas ou legumes para os Estados Unidos vêm enfrentando muitas dificuldades. Por exemplo, eles recebem uma notificação informando-os que os seus gêneros alimentícios não estão conformes com as regras de higiene requeridas, uma vez que os seus caminhões que as transportam passam por uma estrada situada a 300 metros de um depósito público de lixo. Diante disso, a recomendação é que eles devem dar uma volta de 80 quilômetros".

Para Jean Musitelli, um dos especialistas não-governamentais encarregados de preparar o anteprojeto de convenção, os americanos - os quais haviam se retirado da Unesco em 1984 e a ela voltaram a aderir recentemente - "mudaram de estratégia" em relação à futura convenção. "Após uma fase de comiseração no decorrer da qual eles não acreditavam mais neste projeto, eles resolveram atacar frontalmente quando viram que a história estava começando a pegar. Isso tudo se transformou em ataques planejados e maciços contra este projeto de convenção, que eles qualificam de protecionismo disfarçado", explica o antigo porta-voz do Elysée (palácio de presidência em Paris).

Assim, os Estados Unidos apresentaram, na semana passada, comentários gerais e emendas visando a modificar o
anteprojeto de convenção, procurando principalmente diluir o texto para esvaziá-lo de sua substância. A ponto de ampliar as suas aplicações às "matérias percebidas como religiosas", ou ainda às "línguas e à diversidade lingüística". Contudo, neste ponto preciso, eles não obtiveram ganho de causa.

De maneira mais nítida, os americanos consideram nos seus comentários que "a Unesco não deveria lidar com política
comercial, o que é da alçada da OMC". Acima de tudo, eles não querem que seja implantado um instrumento jurídico mais rígido e limitante que a Organização Mundial do Comércio (OMC).

Tom Cruise no Vietnã

Para Jean Musitelli, a outra tática dos americanos consiste em contornar a OMC ou a futura convenção da Unesco,
multiplicando os acordes bilaterais de nova geração. "Os americanos estabelecem precedentes em cada continente e
forçam sucessivamente os governos a renunciarem, o quanto for possível, à sua soberania sobre a sua política cultural", afirma o economista e sociólogo Robert Pilon, vice-presidente executivo da coalizão em prol da diversidade cultural no Canadá.

O Chile foi um dos primeiros a aceitar não modificar a sua legislação existente. Portanto, as suas quotas de difusão de obras audiovisuais não poderão se aplicar aos canais privados, nem à Internet. Apesar dos esforços da França para impedir que o Camboja fizesse uma oferta de liberalização das suas indústrias culturais, muito pouco ou nada pôde ser evitado. "Os americanos utilizam um monte de meios para obter o máximo de liberalização de serviços (cinema, televisão, música, livros, novas mídias). De maneira geral, tudo o que eles precisam fazer é reduzir os direitos alfandegários sobre determinados produtos que os países em questão desejam exportar", precisam assessores de François Loos.

"Existe uma graduação na escala das pressões exercidas pelos americanos", sublinha Jean Musitelli. "Neste momento, no Burkina Faso ou no Benin, diplomatas americanos empreenderam um intenso trabalho de lobby. Eles não hesitam a propor redigir as ofertas comerciais no lugar dos próprios representantes africanos, no que diz respeito aos acordos bilaterais", acrescentam os mesmos assessores de François Loos.

Jean Musitelli precisa que, em determinados países do leste da Europa do leste e no Vietnã, os americanos estão equipando o território com salas de cinema. Ao promoverem a vinda de Tom Cruise ou de qualquer outra estrela do circuito de Hollywood para a inauguração de um "multiplexo", eles estão cuidando de valorizar a sua imagem.

O braço-armado do lobby americano é a Motion Picture Association of America (MPAA), que reúne os principais
estúdios de Hollywood. O seu novo presidente, Dan Glickman, um antigo secretário de Estado da agricultura de Bill
Clinton, entendeu rapidamente qual era o sentido maior da sua missão.

Ele sabe melhor que qualquer outra pessoa que a exportação dos bens culturais estimula as exportações americanas como um todo. O que o levou recentemente a dizer, a respeito da convenção que está sendo preparada na Unesco: "A diversidade cultural não deve ser uma desculpa para criar novas barreiras". Seria impossível ser mais claro.


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