segunda-feira, abril 21, 2014

África e eu

Um dia eu fui à África. Uma entidade muito interessante.

Normalmente se associa a África aos negros, e vice-versa. Que negros? Aqueles, escravizados, trazidos para as Américas. Aí, às vezes, a gente trata a África apenas como cornucópia de negros escravizados. Ou pensa nela assim.

Por exemplo, na minha formação, eu tive uma dificuldade imensa pra internalizar que o Egito era na África. Porque fazem tanta questão de só falar de África como fonte de escravos (e de brigas de “tribos”) que você acaba não conseguindo associar isso a uma das maiores civilizações que já existiram. E aos persas, e aos mouros que foram à península ibérica. Enfim. O imaginário de África fica sendo - graças à maioria das escolas - limitado a etnias pouco evoluídas em termos de tecnologia e sociedade - porque nem isso as escolas ensinam, que as sociedades eram avançadas em termos de funcionamento, hierarquias, normas, leis, tradições, religiões, cultura.

Quando se “descobre” que não só essas etnias representavam muito mais do que era ensinado, mas que no mesmo continente, sistemas sociais extremamente complexos emergiram, dentro de civilizações altamente avançadas, é meio complicado somar as duas coisas.
Então primeiro você aprende tudo deturpado e separado, pra depois ter que desaprender e unir. É bem mais difícil do que parece. E acaba criando um certo desinteresse por África, porque, que diabos de interessante pode ter um continente (que muitos pensam que é um país) que é apenas um fornecedor de escravo (aquele povo terceira classe, que não serve pra nada, não pensa direito, vive se amotinando, etc)?

Morar em Salvador, por incrível que pareça, me ajuda a não me interessar muito por África.
Não apenas porque as escolas não ensinam, mas porque aqui tem muito negro. Muito. Dizem que é a cidade com maior população negra fora de África. Eu não sei. Mas tem muito negro. Então ver pessoas negras é o comum em Salvador. Quer dizer, deveria ser, mas se você olhar em lugares de nicho de gente rica ou classe média alta, vai ver poucos. Mas fora desse mundo - que é pequeno em Salvador - é todo mundo negro. Ou seja, negro, para mim, não era nenhuma novidade. E o normal é que não nos interessemos tanto por coisas que estão ao nosso redor o tempo inteiro. Na infância/adolescência, embora eu me interessasse muito por nossa cultura e “folclore”, me interessava muito pela mitologia grega e nórdica, que eram coisas alheias à minha cultura. Mas nunca me perguntava por África

Aí fui crescendo, estudando, conversando. E me perguntando “que diabos é África?”. Claro que já não era mais um continente provedor de escravos na minha cabeça, mas ainda tinha aquela confusão de somar tudo aquilo que me fora ensinado separadamente naquele espaço.

Quando se consegue somar tudo… acaba sendo difícil de apreender. Aí se começa a entender porque compartimentalizam. Tem que fazer esforço pra juntar tanta coisa diferente num mesmo lugar. É muito grande, muito diverso, cheio de histórias e culturas.

Eu queria ir à África. Não em qualquer lugar. Eu queria ver as pirâmides, ir em Marrocos, ir no Sahara. Os outros lugares não me interessavam muito, porque na minha cabeça domesticada pela escola, eram apenas cidades, pouco desenvolvidas. Nada de novo. Só gente.

Mas era um plano para algum momento num futuro distante. Minha sede pela história clássica ocidental era mais forte, e meus interesses pairavam primeiro por França, Espanha, Alemanha, Grécia, Itália. A África, nos meus planos, viria depois.

Mas eis que África veio antes. Fomos numa aventura filmar um resgate cultural no Benin. Um grupo das Bahias (não é só África que é plural) indo numa das Áfricas.

E foi a primeira vez que eu realmente parei pra estudar África. Tentar entender os países, geografia, povos, línguas, fronteiras, guerras. Se isso tivesse acontecido antes, meu interesse pelo continente seria maior, com certeza.

Me preparei. Benin. Uma tripinha, espremida entre Nigéria, Togo, Niger e Burkina Faso. É tão pequeno que há quem vá de barco à Nigéria pra contrabandear gasolina. Que é vendida na rua em frascos de vidros amontoados. Tão parecido com a Bahia antiga que, no meio da estrada, perdido em pensamentos, me perguntei o que eu estava indo fazer em Cachoeira.

África se mostrou diferente do que eu pensava. Essa África. Que deveria existir em algum lugar, mas seguramente era muito pouco pra se pensar daquele lugar. Muito estranhamento, mas muito sentimento de conforto. Aquele lugar que você não lembra, mas foi muito na infância, e as coisas vão ficando familiares pra você, ao mesmo tempo que são inéditas.

Óbvio que minha relação com África mudou. Muito. Eu penso bastante nessa viagem, adoro viajar. Não foi uma viagem de passeio, foi de trabalho, mas deu pra conhecer e viver muita coisa.

O que era hipótese mal formulada e mal embasada começa a virar prática. Incompleta, limitada, mas prática. Pisar o chão. Ouvir as vozes. Ver as pessoas. Comer. Olhar. E repensar aquele continente. Repensar o que me foi ensinado, por tantos anos. O que foi negligenciado, o que foi esquecido, o que foi não-dito. E as vezes apagar mesmo, pra escrever por cima.

É um país pobre. Tem pessoas muito felizes e sorridentes. Parece com a gente. Mas é diferente.

Que pena, mundo, que me venderam uma falsa África. Foi muito bom ter ido. Eu não sei se volto ao Benin. O mundo é grande, e eu gosto de conhecer outros lugares. Mas foi importante pra eu sentir de perto, e apagar uma história muito mal contada e, com o tempo, reescrevê-la.

3 comentários:

Anônimo disse...

Embarquei com seu texto e fui a pra outro texto igualmente lindo. Separei dois trechos que adoro. Leia.


“Na África , a falta de pudor dos corpos era magnifica. Dava profundidade, dava alcance, multiplicava as sensações, estendia a minha volta uma rede humana. Harmonizava-se com a região dos Ibos, com o traçado do Rio Aiya, com as choupanas da aldeia, seus tetos de cor amarelada, suas paredes cor-de terra. Tal despudor sobressaia nos nomes que entravam por mim adentro, significando muito mais do que nomes de lugares ...”


“...o corpo nu dessa dessa mulher, feito de dobras, de rugas, sua pele como um odre vazio, seus seios longos e flácidos, caindo sobre a barriga, sua pele rachada desbotada, meio cinzenta, tudo isso me pareceu estranho e, ao mesmo tempo, verdadeiro. Como eu teria podido imaginar que essa mulher fosse minha avó? O que eu sentia não era horror, nem pena, mas sim, ao contrário, esse amor e o interesse suscitados pela visão da verdade, da realidade vivida. Lembro-me apenas da pergunta – “ela está doente?”- que ainda hoje me abrasa a estranhamente, como se o tempoo não tivesse passado. E não da resposta, por certo tranquilizadora, talvez um pouco sem jeito, de minha mãe: “não, não está doente, ela é velha, só isso. A velhice, se dúvida mais chocante que para um menino no corpo de uma mulher porque ainda, porque sempre, na França, na Europa, nos países das anáguas e cintas, das combinações e sutiãs, as mulheres normalmente estão imunes a doença da idade. O abrasamento que ainda sinto nas faces, que acompanha a pergunta ingênua e a reposta brutal de minha mãe, como uma bofetada. Isso ficou em mim sem resposta. Claro que a pergunta não era: por que essa mulher acabou assim, gasta e deformada pela velhice?, mas: por que mentiram pra mim? Por que me esconderam a verdade?...

O Africano
J. M G. Lé Clézio

Anônimo disse...

Embarquei com seu texto e fui a pra outro texto igualmente lindo. Separei dois trechos que adoro. Leia.


“Na África , a falta de pudor dos corpos era magnifica. Dava profundidade, dava alcance, multiplicava as sensações, estendia a minha volta uma rede humana. Harmonizava-se com a região dos Ibos, com o traçado do Rio Aiya, com as choupanas da aldeia, seus tetos de cor amarelada, suas paredes cor-de terra. Tal despudor sobressaia nos nomes que entravam por mim adentro, significando muito mais do que nomes de lugares ...”


“...o corpo nu dessa dessa mulher, feito de dobras, de rugas, sua pele como um odre vazio, seus seios longos e flácidos, caindo sobre a barriga, sua pele rachada desbotada, meio cinzenta, tudo isso me pareceu estranho e, ao mesmo tempo, verdadeiro. Como eu teria podido imaginar que essa mulher fosse minha avó? O que eu sentia não era horror, nem pena, mas sim, ao contrário, esse amor e o interesse suscitados pela visão da verdade, da realidade vivida. Lembro-me apenas da pergunta – “ela está doente?”- que ainda hoje me abrasa a estranhamente, como se o tempoo não tivesse passado. E não da resposta, por certo tranquilizadora, talvez um pouco sem jeito, de minha mãe: “não, não está doente, ela é velha, só isso. A velhice, se dúvida mais chocante que para um menino no corpo de uma mulher porque ainda, porque sempre, na França, na Europa, nos países das anáguas e cintas, das combinações e sutiãs, as mulheres normalmente estão imunes a doença da idade. O abrasamento que ainda sinto nas faces, que acompanha a pergunta ingênua e a reposta brutal de minha mãe, como uma bofetada. Isso ficou em mim sem resposta. Claro que a pergunta não era: por que essa mulher acabou assim, gasta e deformada pela velhice?, mas: por que mentiram pra mim? Por que me esconderam a verdade?...

O Africano
J. M G. Lé Clézio

Anônimo disse...

Como é bom liquidação. Agrada sempre muita gente. Você paga a metade e leva o dobro de presente.